As anêmonas espocando, em cores fartas, salpicavam de festa a Natureza, enquanto os miosótis, na gramínea verde, pontilhavam de azul a erva rasteira.
Os ventos perfumados venciam as distâncias, encrespando, levemente, as águas do Jordão, sinuoso, a correr pelos areais frescos na embocadura do mar da Galiléia.
A primavera cantarolava na Palestina, saudada pela orquestração das aves em bandos na copa do arvoredo.
Todas as coisas contribuíam para as auspiciosas Boas Novas, que chegavam aos homens.
As notícias alargavam as dimensões dos acontecimentos e estreitavam as distâncias entre os homens.
As aldeias das regiões ribeirinhas agitavam-se, sacudidas pelas emoções contínuas dos sucessos de cada dia.
Ele apareceu, e era Vida.
As enfermidades físicas desapareciam ante o Seu toque e a todos fascinava.
Suas palavras possuíam o encantamento de responder a perguntas não formuladas, que se diluíam ante a clareza de cada conceito.
Os Seus silêncios conseguiam aquietar as aflições, que não deviam ser afastadas.
Com a limpidez do olhar transparente, identificava as mazelas humanas, sem amesquinhar os seus portadores.
Naqueles dias de suaves júbilos, ninguém adivinharia os acontecimentos porvindouros, que culminariam no sacrifício da Cruz infamante !
Terminadas as azáfamas do cotidiano, era comum vê-lO cercado de pessoas humildes, que O crivavam de interrogações, sedentas de aprendizagem.
Homens e mulheres simples ignoravam as misérias das altas rodas sociais, mais preocupados com os problemas comezinhos, aqueles que mais os afetavam.
Entretanto, vez que outra, surgiam necessitados, sobrecarregados por fardos mais pesados, vítimas de enfermidades morais mais graves.
Numa das reuniões vespertinas, quase ao cair da noite, quando Ele se encontrava a sós, acercou-se uma mulher de distinta posição, que respeitosamente, Lhe apresentou os conflitos que a inquietavam.
Requestada, na comunidade, tinha acesso às autoridades religiosas e civis, desfrutando ao lado de outras personagens, de favores especiais.
- Senhor ! – disse gravemente. – Tenho ouvido falar de Vós. Minhas servas participam das Vossas prédicas e narram-me os Vossos feitos. Venho acalentando o desejo de falar-Vos, sem a coragem para fazê-lo. Hoje, porém, não posso sopitar o anseio, a necessidade, e aqui me encontro.
O Mestre olhou-a com brandura e docilidade.
Sentindo-se estimulada, a senhora prosseguiu :
- Vivo atormentada. As dúvidas sobre a Verdade me assaltam e padeço desassossegos que ninguém imagina. Não me encontro doente do corpo, senão, da alma, e isto me parece injusto. Invejam-me e sou generosa; respeitam-me de público, mas detestam-me no íntimo; saúdam-me na rua e na Sinagoga, todavia, evitam-me...
Lágrimas de real sofrimento moral afloraram aos olhos da visitante, enquanto a voz se lhe embargou na garganta.
Com esforço, conseguiu concluir :
- Se vós vindes de Deus e conheceis os males de coração, ajudai-me!
Jesus compreendeu a dor surda que lhe solapava a aparência, e, sem qualquer afetação, respondeu :
- Sim, Raquel, eu sei.
Citada, nominalmente, a mulher surpreendeu-se, indagando, de pronto :
- Conheceis-me Senhor ? De onde ?
Sem titubeio, o Amigo esclareceu :
- Eu te conheço desde antes deste momento. Eu sou o bom pastor e a todas as ovelhas que o pai me confiou, eu as identifico no adito do coração. Não te surpreendas, portanto, por falar-te assim.
“ Quem me busca, procura meu Pai; aquele que me encontra, a meu Pai compreende, saindo da noite para o dia e da morte para a Vida. Não perece, porque não se acaba, transferindo-se de um para outro estado, porém continuando na Vida. ”
Fazendo uma pausa breve, continuou :
- Há muitos males do coração que afetam a alma.
“ A ambição desmedida leva à loucura.
“ É fugaz a estada no corpo, e, almejar além do que se pode utilizar, significa avançar para alienação.
“ A ambição cobiça o alheio e envenena, facultando a invasão de cruéis verdugos, na casa mental.
“ A calúnia é punhal invisível que retalha vidas e ceifa o caluniador.
“ A inveja é pedrada psíquica que fere o próximo e arrebenta quem atira.
“ A indiferença, a seu turno, mata os sentimentos e se irradia como humor mefítico.
“ Só o amor pode propiciar a paz e fomentar a saúde íntima.
“ É necessário, portanto ser livre.
“ Todo poder, na Terra, é o dado pelo Pai, que o transfere de mãos, exceto aquele que nasce do bem e aumenta sempre.
“ Se desejas a afeição dos outros, ama primeiro, repartindo os teus bens excedentes com os que possuem menos, observando que a melhor maneira de aumentar os valores amoedados será dividindo-os, em considerando que todo aquele que doa investe e quem guarda, deve à vida.
“ Ante a tentação da calúnia, provocada pela inveja, coloca a palavra de estímulo e de respeito, exercitando a amizade fraternal, a caminho da real afeição. “
Houve um silêncio, que se fez natural.
Sentindo-se desnudada, mas não censurada, a interlocutora, em pranto rogou :
- Amparai-me na minha incredulidade e fraqueza !
O Mestre, condoído, ripostou, bondoso :
- Vai Raquel, e começa. A transformação tem início no desejo íntimo e concretiza-se na ação renovadora.
“ Tropeçarás, várias vezes, quase vencida pelo desânimo. Sofrerás o hábito antigo, que se negará a ceder... No entanto, insistindo e orando, conseguirás o êxito que te coroará o esforço. Sê fiel e não receies.”
A consulente ergueu-se e saiu embalada por uma canção nova, que lhe musicava a alma.
Os discípulos, que estavam afastados, vendo-a retirar-se, aproximaram-se, curiosos, e um deles indagou :
- Mestre, qual o problema dela, rica e invejada por todos ?
O Rabi relanceou o olhar pelos companheiros inexperientes e respondeu :
- O reino dos Céus está reservado aos que ajudam sem interrogações e atendem ao próximo sem lhe sindicar das mazelas e fraquezas que o afligem.
“ A curiosidade malsã, injustificável, oferece elementos para males que podem ser evitados.”
Calando-se, mergulhou na magia da noite branda e fresca, refulgente de astros.
Amélia Rodrigues
Do livro Há Flores no Caminho, por Divaldo Pereira Franco.
segunda-feira, 31 de maio de 2010
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